A saga de um rubro-negro e o urubu highlander: Umatragédia carioca em solo paulista
- Luis Alcubierre
- 5 de jun.
- 2 min de leitura
CRÔNICA
Meu caro leitor, há mistérios que a razão não alcança, abismos que a lógica
recusa. E há o futebol, essa paixão visceral que move montanhas e, por vezes,
arrasta urubus. André, um flamenguista de São Paulo, um desses mártires da
distância que sangram rubro-negro a cada mês, vivia o drama de amar um time
que mal via. Um sócio-torcedor, sim, um devoto que despejava sua alma (e seu
dinheiro) no altar do Mário Filho, esperando, quem sabe, um milagre.
E o milagre veio, ou assim parecia. A peregrinação. Tanque cheio, alma em brasa,
o carro rasgando o asfalto rumo ao Rio. Não era uma viagem, era um rito de
passagem. A praia, o sol, a promessa do Maraca no domingo. Ah, o Maraca! Onde
a paixão se torna histeria, onde o homem se desnuda em sua mais pura e
selvagem devoção. Que pena que acabaram com a geral!
Mas o destino, meu caro, o destino é um sádico. Na volta, na Avenida Brasil, essa
artéria pulsante de misérias e glórias, eis que surge o presságio. Uma revoada de
urubus, o símbolo, o totem, a alma do Flamengo, irrompe na pista. Um barulho,
um susto, um pressentimento. André, com a camisa do clube colada ao corpo, riu.
Riu, o pobre coitado, sem saber que o riso era a máscara da tragédia iminente.
Seguiu viagem, o tolo, ignorando o aviso dos deuses.
Horas depois, durante uma parada estratégica para o xixi e a fome, a descoberta
veio: asas abertas, corpo oculto, o urubu lá estava, entre o motor e a lataria. André
decidiu que resolveria o problema ao chegar em São Paulo.
Chegou a São Paulo, noite de domingo, dia de ressaca moral e de tudo fechado.
Mas o destino, repito, é implacável. Uma oficina no Bixiga, um oásis da desgraça.
André, ainda com o manto sagrado, viu o mecânico arregalar os olhos e
perguntou: "Vai dar pra enterrar?", já pensando no ritual fúnebre. E o mecânico,
meu caro, o mecânico, com a voz embargada pelo espanto, soltou a frase que
ecoaria nos anais da bizarrice: "Senhor, o bicho tá vivo!".
Vivo! O urubu, o Julião! Sim, virou Julião no caminho, o highlander da baixada
fluminense! Cinco horas entre o inferno do motor e o vendaval da estrada, e o
bicho, esse demônio emplumado, resistiu. Uma asa quebrada, sim, mas a vida, a
vida teimosa, grotesca, pulsando. Chamaram a Divisão de Fauna, a burocracia
tentando domar o inexplicável.
André voltou para casa. Não com a glória de uma vitória qualquer, mas com a
marca indelével do absurdo. Uma história que não era de futebol, mas da vida. Da
vida que insiste em nos surpreender com o improvável, com o bicho que se recusa
a morrer, com a paixão que nos leva aos limites da sanidade. Uma crônica, sim,
mas também um epitáfio para a lógica, um hino à loucura que nos habita.

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