A fábula dos corvos e o espelho das águas
- Luis Alcubierre
- há 2 dias
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Passaram-se estações desde que os corvos devastaram o Galho Sagrado. A clareira começava a se refazer, mas as marcas daquela noite permaneciam: ninhos vazios, árvores mutiladas e a memória viva do rastro deixado. Os animais aguardavam com expectativa a justiça prometida pelo Conselho dos Sábios.
Na nova reunião, a Coruja, atenta e serena, pediu calma. Mas o debate logo polarizou a clareira. Foi o Pavão-Cinza, respeitado por sua presença no Conselho, quem se ergueu:
— Irmãos, a Justiça exige cuidado, disse ele, com voz cautelosa. — Temos provas suficientes contra os corvos ou estamos nos deixando levar pela emoção do clamor da floresta?
O Elefante, guardião da memória, respondeu em tom firme:
— Pavão-Cinza. Tão antiga quanto nossa floresta é a lição de que os atos pesam mais que qualquer ventania. Viste as folhas rasgadas, ouviste as gargalhadas. É preciso mais?
— Sim, é preciso mais. Vimos corvos em meio à destruição, mas quem diz que foram os culpados diretos? Não houve uma investigação clara. Quem pode afirmar que eles agiram sozinhos e não foram vítimas do caos?
O silêncio que se seguiu não era de concordância, mas de inquietação. O Beija-flor, que pairava atento, não se conteve:
— Quem ri em meio ao estrago não é vítima, disse, com sua voz fina ecoando. — Quem estimula o caos, mesmo sem destruir diretamente, não é inocente. O jardim foi todo destruído, e os corvos dançaram sob nossos olhos.
O Pavão-Cinza deu um passo hesitante para trás, mas manteve a pose. Outros pavões na clareira o observavam com um brilho nervoso nos olhos. A disputa no Conselho tornava-se evidente.
Foi então que a Coruja interveio, pousando com peso ao centro do Galho:
— A verdadeira justiça, Pavão-Cinza, não se limita às provas diretas. Ela observa o padrão dos atos, os estímulos que causam sombras antes mesmo da tempestade. Não enxergar isso, irmãos da floresta, é rasgar nossas próprias raízes.
Os murmúrios tomaram força. Foi o Jabuti quem, com sua sabedoria lenta, concluiu de maneira simples:
— Onde há hesitação na culpa, há espaço fértil para novas noites escuras. Se hoje não protegermos o Galho, amanhã o veremos cair outra vez.
Os corvos, de olhos frios, recolheram-se ao longe. Não houve gargalhadas dessa vez, mas o brilho astuto em seus olhos dizia tudo: silêncio nem sempre é arrependimento. Eles esperariam. Sabiam que a falta de uma unanimidade abrira espaço para a dúvida, e onde há dúvida, há possibilidades de retorno.
O maior golpe, contudo, não foi dos corvos, mas do próprio Pavão-Cinza, que perdeu prestígio após o ocorrido. Sua defesa foi vista por muitos como cumplicidade velada ou vaidade disfarçada de cautela. O Pavão afastou-se do Conselho, isolando-se com os seus. Mas a semente do que plantara permanecia. Os que seguiam questionando a força das decisões eram um reflexo do problema que ele jamais reconheceu.
A Coruja, contemplando o Galho Sagrado, alertou em sua última fala daquele dia:
— A floresta só será forte quando entender que o vento não movimenta sozinho o caos. Ele precisa das asas que o impulsionam. Não vigiar os sinais é como esperar que o mal bata à porta para agir. A vigilância não é uma escolha, é uma necessidade. E a justiça não pode dobrar-se apenas às provas que o tempo nem sempre entrega. Ela deve olhar os padrões, as intenções e reconhecer os atos que, mesmo sem penas sujas, espalham suas sombras.
A clareira, agora dividida, começou a se dispersar. Muitos saíram preocupados, outros aliviados, acreditando que o perigo passara. Mas o Beija-flor, junto ao Jabuti e ao Elefante, fitava o horizonte com seriedade. Sabia que, enquanto a floresta hesitasse em sua memória, os galhos estariam sempre por um fio.
Assim, a fábula não termina como um fim, mas como um alerta. Não basta reconstruir o Galho: é preciso lembrar, vigiar e agir antes que as sombras voltem a crescer. Afinal, a clareira que esquece a lição do espelho das águas verá as pedras atiradas voltarem com ainda mais força.

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