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O país que ainda mata suas mulheres

Os casos recentes de feminicídio expostos esta semana em diversas reportagens não são apenas um choque coletivo. São um espelho incômodo que revela o quanto ainda falhamos como sociedade. Ver mulheres sendo atropeladas e arrastadas, envenenadas, esfaqueadas, estranguladas, baleadas, violentadas, e perceber que nada disso acontece de forma isolada, exige de nós uma reflexão mais profunda do que a simples indignação. É preciso compreender que cada crime desses começa muito antes do ato brutal. Começa na formação cultural que insiste em enxergar mulheres como algo que se controla, se corrige ou se submete. Começa na lógica de poder que se sente ameaçada quando uma mulher floresce.

É revelador perceber que, mesmo diante de maior autonomia, maior presença no mercado de trabalho, maior visibilidade, muitas mulheres continuam sendo punidas pelo próprio sucesso. Há homens que não suportam o êxito de suas companheiras. Confundem independência com afronta; liberdade com perda de controle; amor com posse. E quando essa lógica adoece, ou quando já nasce doente, ela desemboca no que estamos vendo: violência extrema como resposta ao emergir feminino. É cruel, é estrutural e é profundamente triste.

A intersecção entre gênero, raça e classe agrava ainda mais esse cenário. As estatísticas mostram que a maior parte das vítimas são mulheres negras e pardas, o que expõe um país onde desigualdades se acumulam sobre os mesmos corpos. Violência de gênero, racismo estrutural e vulnerabilidade social se retroalimentam, criando um ambiente em que algumas vidas correm riscos maiores simplesmente por serem quem são. Uma sociedade que tolera essa combinação de opressões não pode se considerar avançada em nada.

Outro elemento perturbador é o silêncio. Muitas mulheres não denunciam porque têm medo. Medo de represálias, medo de não serem acreditadas, medo de desamparo, medo de depender economicamente, medo de expor a família ou até de enfrentar o julgamento social. O silêncio não é escolha; é estratégia de sobrevivência. E quando o sistema público falha na resposta, na agilidade, na proteção, esse silêncio se torna ainda mais espesso. A violência não cresce apenas porque há agressores. Cresce porque há brechas institucionais que permitem que eles avancem sem obstáculos.

É inevitável, então, perguntar: o que homens e mulheres, a sociedade de bem, podem de fato fazer para transformar esse cenário? Não basta lamentar que as mulheres estão se fechando, ou que vivem amedrontadas. Precisamos garantir que elas não precisem mais se fechar. Isso exige participação genuína. Exige que homens assumam responsabilidade ativa, que confrontem comportamentos de posse e de controle, inclusive os aparentemente inofensivos, e que compreendam formas mais saudáveis e humanas de exercer a masculinidade. Exige que mulheres sejam ouvidas e acolhidas, que denúncias sejam tratadas com seriedade e que comunidades inteiras se comprometam com redes de apoio. Exige que a violência simbólica, cotidiana, cultural, seja enfrentada com a mesma firmeza com que se combate a violência física.

E o Estado? A pergunta sobre punições exemplares ou sobre a necessidade de mudanças profundas no Código Penal é legítima. Mas tão importante quanto a lei é a sua aplicação. Não adianta ampliar o rigor punitivo se não houver capacidade de prevenir, de proteger, de agir antes que a tragédia aconteça. É claro que educação é caminho determinante. Formar novas gerações para relações mais éticas, mais respeitosas, mais humanas é essencial. Mas não podemos esperar décadas por uma mudança cultural enquanto mulheres morrem no presente. A resposta precisa ser simultânea: educação no longo prazo, políticas públicas eficazes agora.

Quando, então, isso vai acabar? Não há data marcada. Mas há uma direção possível: aquela em que deixamos de olhar para o feminicídio como estatística e passamos a enxergá-lo como falência moral de um país. Aquela em que entendemos que não se trata de “crimes passionais”, nem de “casos isolados”, mas de um padrão que nos envergonha e nos compromete enquanto nação. Aquela em que homens, finalmente, compreendem que respeito não é concessão, mas obrigação. E aquela em que mulheres não precisem mais escolher entre viver plenamente e viver em segurança.

O Brasil ainda mata suas mulheres. E só deixará de fazê-lo quando todos nós, sem exceção, decidirmos que isso é inaceitável. Que nenhuma conquista feminina pode ser tratada como provocação. Que nenhuma vida vale menos do que a ilusão de poder de alguém. Que o país que queremos construir não pode repetir a dor que insiste em nos acompanhar.

É hora de encerrar esse ciclo. Não por estatísticas, mas por humanidade. Não porque estamos chocados, mas porque já passou da hora.


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Foto: Yuri Arcurs | People Images | Envato

 
 
 

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