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O espelho da farsa

Há tempos uma névoa densa cobre o vale. Não é névoa natural. Não vem da água, nem da terra. Vem da palavra. Dos megafones mal sintonizados que ecoam de fora, de longe, tentando ditar aos que vivem aqui o que deve ser verdade, o que deve ser justo, o que deve ser temido.


No alto da colina, ergueu-se uma torre. Nela, um espadachim, destreinado, mas ainda sedento de glória, segura uma corneta dourada. De lá, grita para os quatro ventos jurar defender a honra de um velho castelo. Mas ao mirar o horizonte, não vê que sua corneta já não emite som. O que escapa dela é apenas ruído, distorção e desejo de revanche.


Parte da plateia já não ouve. Apenas observa com um misto de constrangimento e descrença. Mas há quem escute. E acredita! Seja por miopia, por fé ingênua ou pelo ressentimento do contraditório. Para muitos, o canto do espadachim ainda representa um tipo de justiça bruta, quase mítica. 


Uma chance, quem sabe, de ver ruir o palácio, que apesar de ainda em pé, peca pela soberba que ergueu em torno de si.


Do outro lado do oceano, um bufão de salão, cujos cabelos dançam ao vento como bandeiras de um império em ruínas, resolve ecoar a mesma corneta. Como quem tenta dar peso à ilusão, usa o vazio para interferir num jogo que não entende. Fala de honra, de justiça, de perseguição, mas tropeça na própria ignorância, como quem tenta julgar um livro por um título mal traduzido.


Mas os enganos não estão apenas do lado de fora. No próprio vale, entre quem busca cultivar o possível, há também vozes que divergem quanto ao rumo. Nem sempre falam alto, nem sempre se impõem, mas muitas vezes sopram em sentidos contrários, guiadas por visões distintas do que seria o bem comum. 


Falam em nome da ordem, da reconstrução, mas, por vezes, se deixam enredar em disputas silenciosas, priorizando o gesto que assegura posição em vez do passo que aproxima. Entre as torres, os templos e os conselhos do vale, seguem as tentativas de apontar caminhos. Nem sempre harmônicos. Nem sempre claros.


Enquanto isso, o vale segue. Nem lúcido, nem insano, apenas tateando a realidade possível. Aqui, não há pureza, tampouco perfeição. Mas há um certo senso de limite. Um instinto coletivo que repele o delírio quando ele ameaça se tornar regra. É quase imperceptível, mas existe. É a recusa instintiva a ajoelhar-se diante do riso farsesco de quem nunca leu a história que finge defender.


A torre segue erguida. O espadachim, ainda ativo. O bufão, ainda barulhento. As vozes internas, ainda dissonantes. E a plateia, dividida entre o cansaço, o aplauso e o silêncio. Mas o vale... o vale aprendeu a reconhecer o som do vento. 


No fim, resta perguntar: Em que ponto da estrada deixamos de reconhecer o limite entre o real e o delírio? E o que acontece com um povo que precisa, dia após dia, aprender a caminhar dentro de um teatro onde os papéis foram trocados e ninguém mais sabe se está representando ou vivendo?


ree

 
 
 

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